Com palavras
Com palavras me ergo em cada dia.
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras – inaudíveis – grito
para rasgar os risos que nos cercam.
Ah! de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomam-nas à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.
As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?
Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade…
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.
Atravessa-nos um rio de palavras:
com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar…
Egito Gonçalves
Labels: Egito Gonçalves, poesia
As
as
Algumas,
Outras,
Secretas vêm,
Inseguras navegam:
as
Desamparadas,
Tecidas
e
E
as recolhe,
cruéis,
nas
Eugénio de Andrade
Labels: Eugénio de Andrade, poesia
Um livro, mesmo um livro mau, é mais difícil de fazer que um prédio moderno de dez andares, salvo seja a opinião de senhores mestres de obras, íamos a dizer dos senhores arquitectos, que se ocupam com tais frioleiras. Um livro, visto na sua medula espiritual, bem entendido, saiu todinho, como se diz nas trovas à viola, da cabeça do autor.
Saiu-lhe do cérebro, e nada de jacto como Ateneia da cabeça de Júpiter. Saiu-lhe por borbotões como nas dragas, borbotões de massa encefálica, sangue, suor, desespero, através de dias e dias. O homem de letras, sem recorrer a tabelas, nem socorro de nenhuma ordem, terá ele, sem mais ninguém, esboçado a traça geral, disposto em partes, procedido a enchimentos, apurado a alvenaria que são as palavras, coisa viva e fugaz como sardinha no mar. Ninguém o vê à banca, de suor a escorrer-lhe pela fronte. Mas é bem possível que gema, uive, se arrepele, dê punhadas na cabeça renitente.
Aquilino Ribeiro
In Dicionário Houaiss:
1 jacto forte e volumoso; caudal, jorro, borbulhão
Ex.: borbotões de petróleo
2 saída impetuosa de fluido gasoso; rajada, lufada, golfada
Ex.: b. de vento
1 incidente, acontecimento etc. sem importância; futilidade, ninharia, frivolidade
2 comportamento, gesto estúpido, insensato, tolo; parvoíce, patetice
que ou aquele que renite, que teima ou não se conforma; obstinado, pertinaz, inconformado
Labels: Aquilino Ribeiro
A CAMINHO DE MONSARAZ
- Disseste ponto de fuga?
- Disse.
- Onde fica?
- Além, no infinito… móvel como o teu olhar…
- Conheço um fotógrafo ambulante que anda em busca dele.
- A sua loucura. A loucura dos pintores, desde há séculos, muito antes de ser inventada a fotografia.
- Tu és pintor. Mostra-me como isso é.
- Vem comigo dar um passeio. Vou pintar um quadro. Verás.
- Eu também quero ir.
- Eu também.
- Eu também.
- Eu também.
- Eu também.
- Se pensais que vou ficar aqui sozinha, estais muito enganados.
[…]
Fernando Campos, Viagem ao Ponto de Fuga
CRÓNICA
Miguel A. Santos Guerra
cenouras, ovos e café
Uma aluna minha contou-me que está destroçada. Faleceu-lhe uma amiga (a morte chega sempre de forma tão absurda quanto dramática) e o evento abateu-a. A ela ofereço a seguinte história, que pode ser generalizada a qualquer situação adversa da vida de uma pessoa.
Uma filha queixava-se ao pai pelos problemas que tinha e por tudo lhe parecer tão difícil. Não sabia o que fazer para seguir em frente e sentia que acabaria por ser derrotada. Tudo lhe saía mal e parecia que a solução de um problema era sempre a origem de outro problema mais grave.
O seu pai, que era cozinheiro, levou-a ao seu local de trabalho. Ali encheu três panelas com água e colocou-as ao lume. Rapidamente a água de todas as três começou a ferver. Numa das panelas, o pai colocou cenouras, noutras meia dúzia de ovos e na terceira colocou alguns grãos de café. Depois deixou tudo ferver, sem dizer uma palavra.
A filha esperou impacientemente, perguntando a si própria o que estaria o pai a fazer. Após vinte minutos o pai apagou os três fogos. Tirou as cenouras e colocou-as numa travessa. Tirou os ovos e colocou-os num prato. Finalmente verteu o café para um terceiro recipiente.
Olhando a filha, disse:
- Querida, o que é que estás a ver?
- Cenouras, ovos e café, disse ela, surpreendida.
Então, o pai disse à filha para pegar nas cenouras. Ela assim fez e reparou que estavam moles. Depois o pai pediu-lhe que tocasse nos ovos e os abrisse. Ela assim fez e, ao tirar a casca, reparou que o ovo tinha endurecido. Em seguida pediu-lhe que provasse o café. E ela sorriu ao sentir o calor aromático que exalava da taça.
Humildemente, a filha perguntou:
- O que significa isto, pai?
E ele explicou que os três elementos haviam enfrentado a mesma situação, a água a ferver, mas que haviam reagido de maneira diferente. A cenoura entrou na água dura, mas saiu dela mole. Pelo contrário, o ovo entrou frágil na água, mas saíra da água a ferver com o interior endurecido. Os grãos de café, contudo, eram únicos, pois haviam conseguido transformar a própria água a ferver.
- Qual destes serás tu? – perguntou então o pai à sua filha. Quando a adversidade te surge, como reages? És uma cenoura que parece forte, mas que, quando tocada pela dor, se torna débil e perde a força? És um ovo que começa com um coração frágil. Possuis um espírito fraco, mas depois de uma morte, de uma separação ou de um problema tornas-te forte e dura? Por fora pareces igual, mas tornas-te amarga e áspera, com o espírito e o coração endurecido pela dor? Ou serás como o café, que transforma a água a ferver, sendo no ponto de ebulição que o café alcança o seu máximo sabor? Se és como o grão de café, quando as coisas pioram tu reages melhor e melhoras as circunstâncias e as pessoas que te rodeiam.
A filha pensou na lição. A sua resposta perante o engenhoso convite do pai a superar as dificuldades só provocou nela um silêncio meditativo e a resposta de um beijo.
Esta é uma lição muito útil e bela. Podemos confirmar em qualquer dia, em qualquer local de trabalho, em qualquer etapa da vida, que com as mesmas circunstâncias há pessoas amargas e pessoas felizes…
Correio da Educação, nº 244, 9 de Janeiro de 2006 (texto com sup.)
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