11º K - "Deslumbramentos"

                                                                                                     

60ª aula - 25 de Fevereiro de 2008


Escolhemos a mesa do terraço, de luzes reflectidas na água profunda e espessa. Os navios, imóveis e enigmáticos, pareciam monstros que tivessem esperado pela noite para vir à superfície. Só os barcos que ligavam as duas margens, de olhos fosforescentes, nos libertavam desta sensação de que a cidade, desprevenida, se deixara sitiar pelo rio.

- Foste esta manhã ao hospital?

- Decerto.

- Muitos doentes?

Clarisse não insistiu. De olhos fitos na vastidão sonolenta das águas, seguindo-lhes, com ar absorto, o estremecimento subterrâneo, que às vezes refluía como uma mancha de óleo, ela estava, no entanto, de pensamentos a léguas dali. Bem lhe percebi a ausência. Estalei com os dedos a chamar o criado.

- Para começar, dois martinis. – E dirigindo-me a Clarisse: - Hoje, este jantar vai ser com todas as regras. Aprovas?

Ela acenou que sim. O lampião rente ao muro do terraço dava-lhe uma tonalidade crua. A beleza surgia assim estranhamente artificial ou mortificada. Mas, pelo meu lado, assaltara-me um desejo imbecil e urgente de boa disposição.

- Queres então que te fale da minha consulta de hoje… Aí vai: observei um homem das Beiras, com o rosto bochechudo da cor do salpicão, e reformado da Câmara. A sua doença era essa, julgo: uma reforma que o obrigava a trazer fundilhos nas calças. Depois, uma algarvia. Padecia de tudo, muito particularmente de uma língua infatigável. Etc. Estás satisfeita? Claro que, de todas as vezes, eu repetia o estribilho: «Não é para esta consulta.» Levo os dias a repetir as mesmas coisas. Estas e outras, como um papagaio.

A mão de Clarisse segurou-me um dos braços. Impedia-me, assim, de dizer mais baboseiras. Eu bem sabia porque ela me falava do hospital, dos doentes. Já outras vezes o fizera, obliquamente, esperando que eu lhe contasse cenas e casos que lhe mordessem os nervos, enquanto se fechava a toda a insinuação para que reatasse os tratamentos. Mas eu estava atento.

Fernando Namora, Domingo à Tarde

  1. Onde e quando tem lugar o encontro referido no texto?
  2. Qual a actividade profissional do narrador. Justifique.
  3. Em que estado de espírito parece encontrar-se Clarisse? Porquê?
  4. Por que razão se sente o interlocutor assaltado por «um desejo imbecil e urgente de boa disposição»?
  5. Que faz ele para concretizar esse desejo?
  6. Atendendo ao breve relato da consulta daquele dia, com que impressão se fica do narrador e do modo como realiza o seu trabalho?
  7. Que razões levavam Clarisse a falar com frequência do hospital e dos doentes?

II

  1. Esclareça o sentido de:

- ela estava, no entanto, de pensamentos a léguas dali

- este jantar vai ser com todas as regras

- uma reforma que o obrigava a trazer fundilhos nas calças

- padecia […] de uma língua infatigável

- cenas e casos que lhe mordessem os nervos.

  1. Redija frases que incluam verbos da família de:

- noite

- doente

- papagaio

- insinuação

III

Relembre, usando diálogo e em cerca de vinte linhas, um encontro especial com um amigo.




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