A MULHER MISTERIOSA
Noites e noites a fio, quase de madrugada, desenrolava-se a mesma cena: um grande automóvel preto – um carro americano de antes da guerra, talvez um De Soto dos anos trinta – parava de repente ao pé de mim. O motorista, fardado de negro, mantinha-se muito hirto no seu lugar; eu não chegava sequer a ver-lhe o rosto. Mais me intrigava aliás o próprio carro, que parecia ter estado debaixo de água – ou ter sido fabricado no fundo do mar -, embora não apresentasse, na carroçaria, nenhum vestígio de humidade. Mas o capot faiscava, na sombra, como no dorso de um cetáceo; o flanco fusiforme dos faróis denunciava não sei que secreto comércio com os peixes; e a porta de trás, que vinha agora de entreabrir-se – sem que ninguém lhe houvesse tocado –, evocava irresistivelmente, pelo crebo (1) palpitar em que ficara, o inquietante mistério de uma guelra.
Dentro, na outra extremidade do banco, reclinava-se um vulto de mulher cingido num vestido de lamé. Era um vestido de noite, de modelo já antiquado, que por inteiro lhe ocultava as pernas e os pés: a partir da cintura, todo fosforescia, como a cauda de uma sereia.
Havia, no porte dessa mulher, qualquer coisa de hierático, e ao mesmo tempi qualquer coisa de irónico, como se quisesse mostrar – por uma espécie de jogo que não chegava a tomar a sério – o reverso daquilo que sentia. Dir-se-ia que se prestara a servir de modelo, diante de um pintor académico, para um retrato muito convencional, apenas com o fim de troçar intimamente do pintor e do retrato, de si própria e da pose que adoptara. Entre os dedos da mão esquerda – que vinha, enluvada de preto, descansar-lhe no regaço – apertava as varetas cerradas de um leque de marfim. A mão direita, igualmente mergulhada numa luva preta de canhão alto, firmava-se no assento do banco. E era tão-só com um gesto negligente desta mão, mas tão-só com a rotação lentíssima do pulso, que me saudava e convidava a entrar, que me apontava o lugar a seu lado. Então, mal eu me sentava, sem um ruído o carro punha-se em marcha.
David Mourão-Ferreira, “Nem tudo é história”, in Amantes e Outros Contos
(1) crebo – frequente, amiudado, repetido
(2) hierático – majestoso e rígido; sagrado
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